quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Conto(-te) #3

- Mamã, queres brincar comigo?
Entre limpezas e cozinhados, lá ouvia de vez em quando a pergunta. Ocupada nos múltiplos afazeres domésticos, tinha sempre quem me substituísse na tarefa de "brincar", ocupação usurpadora de tempo e para a qual não tinha qualquer jeito. Naquele dia, porém, não havia escapatória: estava sozinha e sem qualquer desculpa. Ainda tentei sugerir um programa de televisão: em vão.
- Mamã, brinca lá comigo!
Só um bocadinho... Em pouco tempo, estava a tomar chá com um rato voador, um cavalo marinho e uma princesa. Fui informada que era a sereia do grande oceano e, juntamente com os meus novos amigos, salvava o mundo de todos os males. Durante o chá (e os biscoitos, que a minha visão imaginária teve dificuldade em ver de imediato), ficámos a conhecer os novos perigos (pelos vistos, já era hábito o pombo mensageiro trazer as notícias) e combinámos as estratégias de salvação. Tudo muito simples: encontrar o inimigo, mostrar-lhe que estava a fazer o mal e éramos todos felizes para sempre. Um sempre que durava até à próxima aventura. A tarde passou: viajámos, lutámos, vencemos, fizemos muitos amigos e tomámos muitos chás. Lembro-me de ter voltado, nessa mesma noite, ao mundo do faz-de-conta, onde tudo era possível e onde o tempo não existia.

- Não quer lanchar?
Olhei-a: uma jovem mulher, a cara não me era totalmente estranha, talvez uma das que ali trabalhavam. Não me interessou: voltei a observar pela janela o jardim, sempre o mesmo jardim, as mesmas árvores, os mesmos bancos vazios.
- Mãe, lembra-se de mim?
Olhei-a novamente: a jovem parecia triste, pelos vistos procurava a mãe. Segurei-lhe a mão e tentei confortá-la, que iria encontrá-la. A tristeza inundou-lhe o rosto e foi conversar com o homem de bata branca junto à porta. Voltei ao jardim: sempre igual, as mesmas árvores, os mesmos bancos vazios.
- Mãe, não quer tomar um chá comigo?
O jardim: surgiu repentinamente um grande lago, de onde saltou um cavalo marinho, e pareceu-me ver um rato voador pousar num dos bancos. Olhei-a: a minha filha estava enorme, uma mulher. Pedi-lhe uma chávena de chá: sem querer, quase se sentava em cima dos biscoitos, não reparou. Em breve, estávamos acompanhadas dos nossos amigos, lembrávamos as nossas aventuras, éramos todos felizes para sempre. Um sempre que durava até o jardim ficar igual, com as mesmas árvores, os mesmos bancos vazios.

Photo: Pinterest
(Texto escrito algures em 2012)

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