O plano não correu como pretendia. Dias, meses, anos a prever, a arranjar estratégias, a contornar obstáculos, a ir além dos limites para alcançar o objetivo. E o destino, numa tática eficaz e simples de jogador experiente, finaliza o jogo e volta a baralhar as suas cartas. Lentamente, como quem pondera a próxima jogada.
Rafael dormia um sono tranquilo, recuperador de tantas noites em que o trabalho parecia não ter fim, em que a vontade de vencer, de ser melhor, de ser maior do que o seu corpo era a prioridade. Dormia num repouso há tanto necessário, mergulhado num outro mundo. Só o som das máquinas que o agarravam ainda à vida interrompia a paz que o rodeava. Junto à sua cabeceira apenas o guardião daquela noite. Observava-o com atenção e serenidade. Nas mãos escorregavam as cartas do baralho, num movimento contínuo e pensativo. Uma decisão aguardava.
Três meses antes, Rafael tinha sido convidado a integrar uma equipa que iria desenvolver um projeto ambicioso e revolucionário. Era a sua oportunidade para concretizar um sonho, mas acima de tudo para brilhar e ser reconhecido. Jogou as suas cartas e fez do projeto a sua vida. Era o primeiro e o último a sair do laboratório; em casa mergulhava em leituras, tentativas, erros e mais um passo no caminho que definira como certo.
O guardião daquela noite observava-o intrigado. Questionava-se acerca da inteligência humana. Não compreendia como era tão levianamente utilizada pelos homens. Não compreendia como a dádiva da vida era tantas vezes confundida com poder.
Dois meses antes, o corpo dera-lhe o primeiro sinal. Era uma reunião importante e os donos do mundo esperavam os resultados obtidos até ao momento. As novidades eram boas, mas Rafael não conseguira proferir uma palavra. O aperto no peito prendera-lhe a respiração e sufocara-lhe a alma. Nos dias que se seguiram pensou a vida: passado, presente. Futuro?
O guardião daquela noite fitou as cartas que continuavam a escorregar nas suas mãos mecanicamente. Era o momento de decidir. Levantou-se, os passos eram pausados e impercetíveis. Do outro lado do vidro, a mulher de Rafael já tinha adormecido sobre si mesma. A dor da espera levou-a à exaustão. No vidro, o reflexo das cartas que mergulhavam umas nas outras numa cadência cada vez mais acentuada.
Um mês antes, Rafael já tinha sido dominado novamente pelo ritmo frenético da vida que escolhera. O episódio anterior tinha sido ultrapassado e, por isso, esquecido. Agora, mais do que nunca, tinha de redobrar esforços pelo tempo perdido, como se a existência da humanidade dependesse disso.
No colo da mulher de Rafael, a cabeça de uma criança. Também dormia, numa paz que só as crianças sabem encontrar. Provavelmente, alheia àquele espaço de senhores de bata branca, de rodopio, de tristeza. Os seus sonhos teriam, sem dúvida, outra natureza. O guardião daquela noite contemplava-a, enquanto questionava o desenvolvimento humano. Como pode o homem desaperfeiçoar tanto o que lhe é oferecido à nascença? Fechou o baralho, retirou uma carta e saiu.
A agitação que se instalou no quarto despertou a mulher de Rafael que, numa ansiedade desmedida, procurava compreender o que se passava. A criança, confusa e assustada, tentava acompanhar o corropio à sua volta, as lágrimas incessantes da mãe. Foram horas transformadas em anos, num compasso de tempo que muitas vezes se julga controlado.
"Tenho uma prenda para ti!", segredou-lhe. E voltou a sorrir na sua timidez ansiosa. "Qual queres?", perguntou, fazendo sinal para os braços escondidos atrás das costas. "Aquele", respondeu Rafael, num suspiro ainda sem força, indicando o lado direito. Num gesto furtivo, a criança estendeu-lhe à frente dos olhos: um ás de copas. "Queres jogar com esta?" e voltou a sorrir.
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