Quando
acordou, não fazia ideia onde estava. As pessoas circulavam à sua volta, em
passo acelerado e mecânico. Uma luminosidade forte, um branco ofuscante
envolviam-na. Fechou os olhos e as lágrimas escorregaram: percebia agora onde
estava, percebia agora o que acontecera.
Era uma noite
como tantas outras. Uma espécie de catarse de final de semana: copos e amigos,
os acontecimentos triviais do trabalho e as novidades sociais.
Ele observou-a
durante algum tempo, até finalmente se aproximar: um cumprimento atrevido, alguns
clichés de deliciar os egos mais frágeis, trocas de sorrisos e olhares ávidos.
Ao terminar a noite, ela pegou na caneta e escreveu o seu número. Durante
largos meses, a paixão apoderou-se do seu coração, toldando-lhe o discernimento.
Voltou a abrir
os olhos, mas a luz parecia estar mais forte. Virou o rosto num gesto
inconsciente: a dor atravessou-a como uma lâmina. As lágrimas, cansadas e
doridas, despontaram dos olhos, novamente fechados: percebia agora o erro que
tinha sido aquela noite, percebia agora que não tinha escrito o seu número, mas
assinado a sua sentença.
As noites de
catarse foram sendo cada vez mais raras, até desaparecerem por completo da sua
agenda. Também os amigos começaram a revelar-se ausentes, sendo substituídos
por ele: aquele homem sedutor, que lhe estava destinado, que era o seu porto de
abrigo, o homem da sua vida. Aquele homem que também se foi revelando
diferente, mais autoritário, mais agressivo.
A relação
passou a ser um ciclo de momentos de paixão imensurável e cega, seguidos de
momentos de agressão, que testavam cada vez mais os limites humanos, de
afastamentos e pseudodecisões definitivas e, por fim, de reconciliações com
promessas de mudança.
Não conseguia
parar as lágrimas. Pensava no seu corpo, sujo e inútil; pensava na sua alma,
fraca e solitária. Recordava as mãos enormes que lhe apertavam o pescoço,
roubando-lhe o pouco ar que sentia ter, os repetidos pontapés de fúria que a
faziam encolher-se, como se quisesse voltar ao útero da sua mãe, como se quisesse
voltar a nascer. E queria: ter uma vida nova, começar de novo.
Um médico
aproximou-se: pegou-lhe na mão, limpou-lhe uma lágrima que escapava, morta. Era
altura de dizer a verdade, de acabar com a vergonha que a consumia: percebia
agora que era vítima de si própria, percebia agora que o verdadeiro agressor
escondia-se dentro de si.
Abriu os
olhos, apertou a mão do médico.
Não estava
sozinha.
Sem comentários:
Enviar um comentário