Saímos de casa.
Houve alturas em que aquela era uma saída banal, uma necessidade quase fisiológica: para ela, uma questão de pura estética; para nós, o nosso momento de ressurreição. Sim, a nossa existência era permeável ao tempo e às suas intempéries; apenas a morte humana ditava o nosso fim. Colorações, permanentes, extensões faziam parte da nossa vivência. O corte, inevitável de tempos a tempos, um verdadeiro catalisador: as marcas do tempo desapareciam e voltávamos a ser crianças, a ser energia, vida. Ela: vaidosa, chamava os olhares na rua para o seu novo visual. Nós: respirávamos o ar da rua como num cumprimento à vida. E a vida começava.
Estacionámos o carro.
Hoje não era uma daquelas alturas. Hoje ela suspirou alguns minutos dentro do carro antes de sair: triste, nervosa, miserável. Assim estávamos todos: a noite tinha sido de lamento. As lágrimas caíram-lhe horas a fio, encharcando a almofada e todos os que dormiam esmagados naquele hemisfério. Deitado no seu rosto, assisti à dor que era dela e nossa, aninhando-me num carinho de conforto, de solidariedade. De manhã, o desânimo era geral: a escova passava e todos nos deixávamos ir, sem formar, sem destacar a nossa presença de um modo exuberante (um ritual todas as manhãs); nem mesmo as famosas bailarinas nos deliciaram com o seu espetáculo de contorcionismo acrobático que culmina sempre num efeito ondulado, selvagem, sensual.
Dirigimo-nos ao cabeleireiro.
Sabíamos que não era a mesma rotina banal, a mesma necessidade. Mas não deixava de ser uma necessidade. Quando saíssemos, ela não iria chamar os olhares de ninguém, provavelmente voltaria a afundar-se nas suas lágrimas, longe de todos os olhares. Renascidos, restar-nos-ia aguardar, sem saber se algum dia voltaríamos a crescer, livres, felizes. Juntos, acompanhámos todas as consultas médicas, todas as evoluções, todas os retrocessos. Juntos, entregámo-nos muitas vezes, sem firmeza. Juntos, voltámos a lutar e a acreditar.
Hoje: estamos em silêncio. Sabemos que se avizinha uma incógnita. Sabemos que não temos força e que temos de lutar. Sabemos que este pode não ser um dos nossos momentos de ressurreição. Olhamo-nos uma vez mais: sorrimos a coragem que não existe, inspiramos a força que nos abandonou, fechamos os olhos numa oração.
Ela entra no cabeleireiro.
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