Chegava cedo, todos os dias: sentava-se numa mesa, sozinho, num ritual quase perfeito. Pousava os dois cadernos, a bengala, pedia um café cheio. O empregado, com a sua simpatia habitual, trazia o café. Aqui tem: pousava cuidadosamente, sorria, voltava ao balcão. O velho homem agradecia e demorava-se uns minutos a apreciar o cheiro quente e familiar do café, antes de o beber, também devagar, também com prazer. Abria um caderno e passava lentamente a mão saudosa pelas páginas: muitas fotografias e notas. Abria o segundo caderno, a mão melancólica procurava e recuava: em branco. Fechava os cadernos e permanecia sentado, até reiniciar o ritual. O mundo girava à sua volta, incógnito.
Assim acontecia no aeroporto: o local de passagem dos anónimos, dispersos entre partidas e regressos. Eu observava-o do balcão: o café cheio, os cadernos, o sentir. Naquele dia, aproximei-me: deseja mais alguma coisa, senhor? Respondeu-me que não, sorriu, nervoso. Continuava atento aos sons que o rodeavam e já folheara os seus cadernos várias vezes.
– Amanhã já não poderei vir. – acrescentou, continuando o diálogo que não verbalizámos. – Quer fazer-me companhia?
Já tinha acabado o meu turno, por isso aceitei. Quando voltei do balcão, sentei-me com o meu café curto e comecei a atirar questões triviais, abrindo caminho para alimentar a minha curiosidade. O velho homem percebera, mas deixou-me desbravar os trilhos ao ritmo natural das conversas de circunstância. Era fotógrafo, ou melhor, tinha sido fotógrafo: até ao dia em que um acidente o privou da sua maior ferramenta, a visão. Apresentou-me o primeiro caderno: um delicioso repertório de viagens por todo o mundo, uma disparidade de rostos, uma panóplia de emoções. Ali estavam as suas vivências, através do seu olhar, impressas em pedaços de papel. Durante horas, contou-me as suas aventuras, falou-me de pessoas e culturas, de momentos únicos, sempre com uma satisfação plena de trabalho cumprido. Revelei-lhe o meu desejo de correr o mundo, de conhecer o maior número de terras e pessoas que conseguisse: gostava de construir o meu próprio caderno. Pedi-lhe conselhos.
O velho sorriu, agora imerso numa tristeza profunda. Pousou a mão sobre o segundo caderno: este é pessoal, conta a história da minha vida, da minha família, explicou-me. Empurrou o caderno na minha direção.
- Construa este caderno primeiro. No final, será este o que mais quererá relembrar.
Levantou-se, agarrou na sua bengala, no seu caderno de viagens: nunca mais regressou ao seu ritual.
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