Daniela desenhava o mundo sem o ver. Dentro da escuridão, pintava gente e paisagens de todas as cores, num traço próprio da imaginação. O percurso quotidiano estava calculado ao milímetro: entrar no autocarro, sentar-se no primeiro banco disponível e acompanhar toda a viagem respirando os sons, os movimentos, os cheiros.
Ele tornou-se uma parte daquela viagem rotineira. Entrava duas estações depois, sentava-se ao seu lado e contava-lhe uma história. Ou duas, se a azáfama citadina o permitisse. Histórias antigas de quem já respirou muita vida.
- És feliz? - perguntou-lhe naquele dia.
Uma pergunta que veio alterar aquela rotina tão memorizada e esperada todas as manhãs. Uma pergunta vaga e repleta de respostas. Daniela não proferiu nenhuma, guardou aquela pergunta suspensa no seu arco-íris.
O toque dele na sua mão fê-la estremecer. Mais um gesto que desviava por completo o que ela já sabia de cor. Colocou-lhe um objeto na palma da sua mão e fechou-a cuidadosamente.
- Sabes o que é?
Aquele sentir fê-la regressar anos atrás. A uma casa onde conhecia todos os cantos e sabia todas as cores. Cores que não precisava imaginar. Uma casa onde fora muito feliz, mas também onde chorara, onde sofrera e onde encontrara a escuridão que agora aprendia a pintar à sua maneira. Lembrou-se do palhaço que todos os sábados de manhã esperava por ela na televisão e a fazia rir. Um riso de criança sem aditivos. E entre estas memórias, continuava a analisar suavemente o brinquedo que agora repousava na sua mão. E parecia conhecê-lo de cor.
- Acha que é possível viver assim? - retorquiu, finalmente, quando as suas cores começaram a diluir-se na escuridão de todos os dias.
- Prefiro acreditar que sim. - e, sorrindo, ele não disse mais nada.
Quatro paragens. Mais uma vez, ela tinha-as contado. Era um exercício já mecânico como tantos outros. Duas paragens depois voltaria a ficar sozinha. Já sabia. Numa das suas histórias ele contara-lhe que seguia sempre dali para uma pequena aldeia, onde trabalhava. Nunca soubera ao certo o que fazia aquele homem. Sabia apenas que tinha uma voz de quem já tinha percorrido muito caminho, serena, de quem não tem pressa e certamente gostava do que fazia.
- Amanhã já não vou estar aqui. - afirmou o homem.
Não foi uma surpresa, algures no fundo do seu mundo ela já esperava por aquele momento. Embora pudesse sentir alguma tristeza, algo novo nascia no seu coração. Uma vontade de tornar a pintar tudo com novas cores, muitas cores.
- Confesso que vou ter saudades das suas histórias. - e sorriu, lembrando-as aos pedacinhos.
Última paragem. Ele pousou a mão sobre a dela, que ainda explorava o brinquedo num reviver de memórias. Um toque de despedida ao som dos sinos da catedral ali próxima.
O autocarro voltou a arrancar e sentia-se o vazio do banco ao lado. Daniela olhou pela janela e imaginou um enorme campo verde, cheio de árvores e flores, com pequenas casinhas ao longe pintadas de amarelo e azul. Nunca mais voltou a estar com aquele homem. Na pequena aldeia, nunca ninguém ouviu falar dele.
Ele tornou-se uma parte daquela viagem rotineira. Entrava duas estações depois, sentava-se ao seu lado e contava-lhe uma história. Ou duas, se a azáfama citadina o permitisse. Histórias antigas de quem já respirou muita vida.
- És feliz? - perguntou-lhe naquele dia.
Uma pergunta que veio alterar aquela rotina tão memorizada e esperada todas as manhãs. Uma pergunta vaga e repleta de respostas. Daniela não proferiu nenhuma, guardou aquela pergunta suspensa no seu arco-íris.
O toque dele na sua mão fê-la estremecer. Mais um gesto que desviava por completo o que ela já sabia de cor. Colocou-lhe um objeto na palma da sua mão e fechou-a cuidadosamente.
- Sabes o que é?
Aquele sentir fê-la regressar anos atrás. A uma casa onde conhecia todos os cantos e sabia todas as cores. Cores que não precisava imaginar. Uma casa onde fora muito feliz, mas também onde chorara, onde sofrera e onde encontrara a escuridão que agora aprendia a pintar à sua maneira. Lembrou-se do palhaço que todos os sábados de manhã esperava por ela na televisão e a fazia rir. Um riso de criança sem aditivos. E entre estas memórias, continuava a analisar suavemente o brinquedo que agora repousava na sua mão. E parecia conhecê-lo de cor.
- Acha que é possível viver assim? - retorquiu, finalmente, quando as suas cores começaram a diluir-se na escuridão de todos os dias.
- Prefiro acreditar que sim. - e, sorrindo, ele não disse mais nada.
Quatro paragens. Mais uma vez, ela tinha-as contado. Era um exercício já mecânico como tantos outros. Duas paragens depois voltaria a ficar sozinha. Já sabia. Numa das suas histórias ele contara-lhe que seguia sempre dali para uma pequena aldeia, onde trabalhava. Nunca soubera ao certo o que fazia aquele homem. Sabia apenas que tinha uma voz de quem já tinha percorrido muito caminho, serena, de quem não tem pressa e certamente gostava do que fazia.
- Amanhã já não vou estar aqui. - afirmou o homem.
Não foi uma surpresa, algures no fundo do seu mundo ela já esperava por aquele momento. Embora pudesse sentir alguma tristeza, algo novo nascia no seu coração. Uma vontade de tornar a pintar tudo com novas cores, muitas cores.
- Confesso que vou ter saudades das suas histórias. - e sorriu, lembrando-as aos pedacinhos.
Última paragem. Ele pousou a mão sobre a dela, que ainda explorava o brinquedo num reviver de memórias. Um toque de despedida ao som dos sinos da catedral ali próxima.
O autocarro voltou a arrancar e sentia-se o vazio do banco ao lado. Daniela olhou pela janela e imaginou um enorme campo verde, cheio de árvores e flores, com pequenas casinhas ao longe pintadas de amarelo e azul. Nunca mais voltou a estar com aquele homem. Na pequena aldeia, nunca ninguém ouviu falar dele.
Photo: Pinterest |
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